[ABE-L] Usos e abusos dos números

Alexandre Galvão Patriota patriota.alexandre em gmail.com
Sex Dez 22 14:05:07 -03 2017


Parabéns ao Hedibert e a Tatiana pelo artigo.

Sobre o último parágrafo:

``Se o objetivo é corrigir as desigualdades do ensino superior público, já
temos uma política de sucesso: as cotas. De 2010 a 2014, o percentual de
estudantes com renda familiar de até 3 salários mínimos aumentou 27%, ao
passo que a faixa acima de 7 salários diminuiu 37%. A política de cotas
ainda está em fase de implementação e seus efeitos plenos só poderão ser
medidos em 2018. Tudo leva a crer que o melhor caminho é expandir e
aprimorar essa política que, em virtude do comprovado aumento salarial dos
formados, provoca uma efetiva e duradoura redução das desigualdades.´´

Corrijam-me se eu estiver errado, mas: se o percentual de estudantes com
renda familiar entre [0,3] aumentou 27% e o percentual de estudantes com
renda familiar entre [7,inf) diminuiu 37%, então podemos afirmar que em um
certo sentido as famílias dos estudantes estão *mais* pobres. Não quero
entrar nos detalhes filosóficos das teorias econômicas, mas me parece claro
que diminuir a desigualdade financeira não é o mesmo que diminuir a pobreza.



2017-12-22 9:22 GMT-02:00 Hedibert Lopes <hedibert em gmail.com>:

> Usos e abusos dos números
> Por Hedibert Lopes e Tatiana Roque
>
> http://www.valor.com.br/opiniao/5235489/usos-e-abusos-dos-numeros
>
> A regressividade dos gastos com ensino superior público é apontada
> frequentemente como justificativa para a cobrança de mensalidades. O
> relatório recente do Banco Mundial afirma, por exemplo, que 65% dos
> estudantes das universidades federais estão entre os 40% mais ricos. Quem
> são esses "mais ricos"?
>
> Os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios de 2015 mostram
> que nesse grupo de 40% "mais ricos" estão pessoas com renda per capita
> média de R$ 960,00. O Banco Mundial não define a partir de que renda se
> pode designar um grupo como o dos mais ricos, nem justifica o foco nos 40%.
> Poderíamos selecionar os 30% mais ricos, que ganham acima de R$ 1.200,00;
> ou os 20%, que ganham acima de R$ 1.700,00. A renda média desses grupos
> difere pouco. De fato, a distância só aumenta quando selecionamos os 10%
> mais ricos.
>
> Suponhamos que fossem cobradas mensalidades dos estudantes que realmente
> têm condições de pagar, escalonadas de acordo com a renda. Usando os dados
> da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino
> Superior (Andifes), verificamos que 81% dos estudantes vêm de famílias com
> renda bruta familiar inferior a R$ 6.500,00, logo não poderiam pagar. Na
> faixa de renda familiar bruta entre R$ 6.500,00 e R$ 9.300,00 estão 9% dos
> estudantes (de um total de aproximadamente 1 milhão, somando-se todas as
> universidades federais do país). Superestimando a capacidade de desembolso
> em 15%, essas famílias pagariam uma mensalidade de R$ 1.200,00, perfazendo
> R$ 1,3 bilhão no total. Já a faixa com renda familiar bruta acima de R$
> 9.300,00 compreende 10% dos estudantes, mas é preciso analisar
> detalhadamente a distribuição de renda nessa faixa.
>
> O estudo da desigualdade feito pela Oxfam mostra que, no topo da
> população, reproduz-se a aberrante desigualdade brasileira: as famílias 10%
> mais ricas têm rendimentos médios de R$ 18.000,00, sendo o rendimento médio
> das famílias 1% mais ricas de R$ 160 mil. Logo, mantendo nossa estimativa
> do valor da mensalidade em 15% da renda familiar, obtemos que 9% dos
> estudantes pagariam R$ 2.700. Já os 1% mais ricos pagariam R$ 4 mil - o
> valor da mensalidade nas melhores universidades privadas. Somando-se, ao
> fim, todas as mensalidades possíveis, chegamos a um total de R$ 4,7
> bilhões, ou seja, em torno de 11% do orçamento anual das universidades
> federais (de R$ 41 bilhões). Devemos lembrar, contudo, que é necessário
> subtrair desse percentual o custo de se verificar quem pode ou não pagar
> (uma operação complexa), além do custo de administrar a cobrança. Na
> verdade, implementar medidas para melhorar a administração da universidade
> - o que não contradiz seu caráter público - poderia ser bem mais efetivo.
>
> Resumindo, cobrar mensalidades ajudaria pouco a enxugar o orçamento
> público e o Banco Mundial parece ter forçado os números para nos convencer
> do contrário. O cerne da disputa está nas faixas intermediárias, que nem
> podem realmente pagar nem entram na categoria de pobres (para fazer jus a
> bolsas). A solução ventilada para esse grupo de renda média é o crédito,
> que já mostrou efeitos perversos nos EUA e na Inglaterra, levando a um
> grave endividamento de estudantes - comprometendo o futuro de jovens que
> sequer ingressaram no mercado de trabalho.
>
> Do ponto de vista matemático, o problema é que a curva de distribuição de
> renda no Brasil é extremamente assimétrica (quase linear até o decil mais
> alto), em nada semelhante a uma curva normal.
>
> Dito de modo menos técnico, as faixas de renda intermediárias dos
> brasileiros são muito similares - e excessivamente baixas. Isso torna pouco
> rigorosa a separação entre "mais ricos" e "mais pobres", sob o risco de
> distinguir quem ganha R$ 960 por mês de quem ganha R$ 800. Só um critério
> qualitativo pode estabelecer a partir de que renda alguém pode ser
> considerado "não pobre".
>
> É positiva a tendência de analisar políticas públicas usando estatísticas.
> Deve-se tomar cuidado, todavia, com a dissociação entre informações
> quantitativas e qualitativas. A postura científica aconselha o uso de
> estatísticas para confirmar ou refutar perguntas em aberto. Mas as
> definições dos termos do problema, com impactos sociais significativos,
> precisam levar em conta o ideal de sociedade que se quer construir.
>
> Se o objetivo é corrigir as desigualdades do ensino superior público, já
> temos uma política de sucesso: as cotas. De 2010 a 2014, o percentual de
> estudantes com renda familiar de até 3 salários mínimos aumentou 27%, ao
> passo que a faixa acima de 7 salários diminuiu 37%. A política de cotas
> ainda está em fase de implementação e seus efeitos plenos só poderão ser
> medidos em 2018. Tudo leva a crer que o melhor caminho é expandir e
> aprimorar essa política que, em virtude do comprovado aumento salarial dos
> formados, provoca uma efetiva e duradoura redução das desigualdades.
>
> Hedibert Lopes é professor titular de Estatística e Econometria do Insper
> e foi Professor da Booth School of Business da Universidade de Chicago
>
> Tatiana Roque é professora do Instituto de Matemática da UFRJ e foi
> presidente da Associação dos Docentes da UFRJ (ADUFRJ)
>
>
>
>
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Prof. Dr. Alexandre G. Patriota,
Department of Statistics,
Institute of Mathematics and Statistics,
University of São Paulo, Brazil.
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